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Uma banda pela noite de Porto Alegre

por Rogério Ratner

A noite de Porto Alegre, atualmente, é bem diversificada, havendo inúmeras opções em termos de bares, restaurantes, casas noturnas, cafés, etc. Além disso, a capital gaúcha tem recebido uma infinidade de shows musicais dos mais diversos estilos, inclusive internacionais, reunindo uma ampla gama de atrações não raramente na mesma data. Como se diz, aqui em Porto atualmente “há para todos os gostos”. Uma constatação que faço, contudo, é a da grande volatilidade dos estabelecimentos noturnos em nossa cidade. Inúmeras casas e endereços vão surgindo continuamente, mas o desaparecimento da grande maioria em geral também não tarda. Assim, a memória da vida noturna da capital gaúcha vai vivendo apenas nas lembranças afetivas de quem freqüentou determinadas casas, que, não raro, desaparecem sem deixar rastros palpáveis. Por isso, pretendo aqui relembrar alguns locais que invocam boas lembranças, e que freqüentei especialmente a partir dos anos 80, período em que vivi o final da adolescência e o início da vida adulta propriamente dita, com o objetivo de fazer os meus contemporâneos “viajarem” um pouco no tempo, e de os mais novos conhecerem um pouco do que havia em termos de noite em Porto Alegre. Cabe esclarecer desde logo que não tenho a pretensão de fazer aqui um estudo sobre a noite da capital gaúcha, mas apenas apontar alguns lugares legais que conheci. Neste ponto, é preciso deixar claro também que, obviamente, havia uma infinidade de outras opções de lugares pra ir, mas que, por uma razão ou outra, eu não freqüentava, de modo que este retrato é limitado e parcial. É necessário considerar que a freqüência a estes lugares que vou mencionar estava vinculada ao meu perfil pessoal no período, e que, naturalmente, orientava minhas escolhas e gostos. Assim, estavam mais ligados às minhas áreas de interesse, especialmente a música, e ao meu perfil sócio-econômico-cultural, de estudante da UFRGS vindo da classe média baixa.  

Eu morava na rua Jacinto Gomes, portanto, em plenos limites do bairro Bom Fim. Geralmente, quando ia sair, eu estabelecia uma espécie de roteiro, sendo que havia duas direções básicas: o Bom Fim ou a Cidade Baixa.

No  início dos 80, o Bom Fim vivia repleto de jovens, a lotar seus bares e povoar suas calçadas, reunindo uma “fauna” especialmente na Av. Oswaldo Aranha, que incluía o pessoal universitário (então fortemente engajado na luta pelo fim da ditadura militar), os roqueiros (punks, metaleiros, new wavers, góticos, rockabillys, e o que mais fosse), e mais uma multidão meio indefinível, que de uma certa forma ecoava o rescaldo dos hippies, incluindo usuários de drogas e grandes consumidores de álcool, que nós, os “engajados”, costumávamos chamar de “lumpens” e alienados. Para o pessoal mais “cabeça”, de viés intelectualizado, havia o grande atrativo do cinema, especialmente o Bristol, que ficava nos altos do cine Baltimore, na Oswaldo. Assisti, ao lado de muitos universitários contemporâneos, inúmeros filmes no cineminha que era totalmente “cult”, e que muitas vezes realizava ciclos focando determinados cineastas, sendo responsável por formar uma legião de espectadores voltados ao “cinema de arte”. Vi ali ciclos e filmes de Godard, Glauber Rocha, Truffaut, Tarkowsky, Orson Welles, Eisenstein, etc., etc. O Cinema 1 – Sala Vogue, na Avenida Independência (alto Bom Fim) também era muito frequentado por aquela parcela da juventude, e igualmente notabilizava-se por exibir filmes de arte. Aliás, numa das últimas vezes que fui àquela sala, antes de a mesma ser fechada, aconteceu uma história bem engraçada, da qual eu e minha mulher sempre rimos quando lembramos: estávamos vendo o filme “Nouvelle Vague”, de Godard. Trata-se, sem dúvida, de um dos filmes mais confusos deste diretor que, de resto, sempre cultuou um estilo intrincado e obtuso. Ninguém tava gostando, mas não era de bom tom sair no meio da sessão, era quase uma “heresia”, e ninguém queria “pagar o mico” de ser visto saindo do cinema antes do fim. O filme arrastava-se indefinidamente, sem pôr fim à agonia dos espectadores. Eis que um corajoso se levantou, ao que todo mundo lhe voltou o olhar, em grave desaprovação… o sujeito, então, começou a gritar bem alto, “o que que é, este filme é uma bosta, vocês não tem coragem de levantar, é porque são uns trouxas, se acham muito inteligentes, etc., etc”, para o espanto e a gargalhada geral. Aliás, os filmes de Godard me fizeram passar por bons “micos”. Participei da famosa passeata organizada pelo DCE da UFRGS contra a proibição do filme “Je Vous Salue Marie”, cuja exibição foi proibida pela Ditadura, em vista da anatematização da fita pela Igreja Católica. A passeata foi tensa, pois, embora fosse a fase do “degelo”, ainda estávamos em plena Ditadura, e a Brigada Militar acompanhou de forma ostensiva o protesto. Como ápice, o DCE organizou uma sessão para passar o filme que era “super clandestina e secreta” no auditório da Faculdade de Arquitetura. Aí fomos para lá, todos muito tensos com a possibilidade de que a polícia militar invadisse o teatrinho e “baixasse o cassete”. Mas nem foi preciso a intervenção da “repressão”: deu cinco minutos de filme e o pessoal começou a sair, a princípio aos poucos, depois massivamente, dada a chatura da película (rss)… eu saí no meio, e, sinceramente, não sei dizer quantos heróis “agüentaram” até o fim. Outro cinema que era bem freqüentado, neste gênero, era a sala da UFRGS, então recém-inaugurada, e as da Casa de Cultura Mário Quintana. Na UFRGS, eu era fã de carteirinha dos shows do Projeto Unimúsica, que na época ocorriam toda sexta-feira, ao final da tarde, no Salão de Atos, não perdia um, só com artistas locais, não era como o projeto de agora. Foi um grande palco para o pessoal da MPG, e os shows ficavam sempre lotados.    

O Bom Fim, além do cinema, tinha como grande atração os seus botecos e bares. Lembro de ir no Bar Ocidente, logo após a sua inauguração, e já era realmente um grande “point” dos alternativos em geral, sendo, aliás,  habitualmente alvo de “batidas” da Brigada Militar, que botava todo mundo para fora para ser “revistado”; foi uma barra pesada para o estabelecimento, pois a marcação era realmente cerrada, mas felizmente os proprietários “agüentaram no osso” aquela fase persecutória, e a casa continua “bombando” até hoje. Dos botecos “clássicos” do Bom Fim, havia o Bar João (de que o meu pai, como bom jogador de sinuca, era um dos habitués do “turno da tarde”, e eu seguido ia lá para encontrá-lo), o Lola, o Bom Fim… peguei a inauguração da Lancheria do Parque, que eu e um amigo “estreamos” ingerindo sem solução de continuidade três pratos do seu clássico “buffet livre”, então uma espécie de novidade nos bares de antanho (o comum era os almoços chamados “comerciais” serem servidos em pratos feitos, ou “PFs”, também conhecidos como “torpedos”). Havia um outro bar, cujo nome não lembro, que ficava nos altos da antiga Livraria Baiadeira, hoje tem uma imobiliária funcionando no térrreo. O Escaler e o Luar, no mercadinho do Bom Fim, ficavam sempre cheios desta “fauna” variada a que nos referimos. O Escaler, aliás, chegou a fazer um circo de lona, no estilo “Circo Voador” do Rio, que ficava do lado do Gigantinho, e onde rolavam uns shows e festas bem legais. Cheguei a ir numa festa de réveillon e num carnaval lá, baile animado pelo Zezé, meu professor no Clube do Guitarrista Gaúcho. Houve também um outro circo, onde uma vez assisti a um show do Bebeto Alves, que ficava em um terreno próximo ao atual ginásio Tesourinha, que era muito legal idem.  Pra fazer um “rango” no “Bonfa”, além da “Lanchera”, tínhamos o Zé do Passaporte (cujo trailer ficava ainda na calçada onde hoje tem o postinho da Brigada Militar) e o Kripton, que depois se mudou para a Goethe. Aliás, em termos de lanches, além do Trianon (que, à época não era “tão limpinho” como hoje, consistia em um boteco com uma chapa e um belo latão de lixo de metal, postado bem ao lado, onde eram despejadas as cascas de ovo e os talos das alfaces, as gorduras dos bifes e etc.), a grande sensação era o Mac’dinhos (o nosso primeiro Macdonald’s, só que “made in Porto Alegre”), o Cachorro do Rosário (que só existia lá mesmo, e com os pedintes e mendigos “de brinde” de sempre) e os crepes em trailers na Carlos Gomes (estes já eram num padrão mais “sofisticado”, opção mais “burguesia”). Numa época, no espaço da churrascaria da Oswaldo, um restaurante de comida israelense, pois um sabra veio morar aqui um tempo,  depois voltando pra Israel, muito bom. O antigo Serafim (Fedor), neste período, já havia pego fogo e saíra de “circulação”, abrindo apenas uma espécie de “sucursal” na Felipe Camarão, perto da Bento Figueiredo, onde às vezes eu também encontrava o meu pai.

Eu costumava ir muito a shows no Araújo Vianna, que então estava a pleno, sendo um dos palcos principais do pessoal do rock e da MPG. Vi um sem-número de shows de todos os tipos lá, de rock, de MPB, de música instrumental e o que mais fosse. Rolava uma enormidade de shows coletivos do pessoal da MPG e também do rock gaúcho. Era a época do fim da ditadura, e toda hora pintava um “ato-show” em solidariedade a isto ou aquilo ou de protesto, e também foi o despontar do rock gaúcho dos 80, então o velho auditório fervilhava. Foi lá, inclusive, que tive a oportunidade de começar a me apresentar, nos domingos à tarde, num projeto muito legal do diretor do auditório da época, o professor Rui, que abria espaço para os músicos iniciantes. Depois, com diversos amigos, nos reunimos para realizar o show coletivo “7 na 6ª” (eram sete artistas/grupos, e o show era na sexta-feira) lá mesmo, isto deve ter sido por 1984. Bem na esquina da José Bonifácio com a Santa Terezinha, tinha o bar Café com Leite. Eu ia bastante ali ver o Léo Henkin e o Ralfe Peruffo tocarem, e também o Edu Natureza, o Nando Gross, o Giba Giba, o Toneco, o Galileu Arruda, o Nei Lisboa, o meu professor de violão Roberto Thiesen, e muita gente boa mais. Numa ocasião, deu um baita quebra-quebra: num dos shows marcados pelo Robertinho do Recife, em sua fase metaleira, o espetáculo foi cancelado, e a metaleirada do Bom Fim, inconformada, quebrou tudo, os bancos de madeira, foi um escarcéu. Outro show mágico que fui lá foi o do Hermeto Paschoal, mas realmente foram muitos shows bons vistos.

Quanto à Esquina Maldita, naquela época já estava meio “out”, e eu só ia lá de vez em quando com o pessoal da minha faculdade que era mais engajado, pra tomar um chopp.

Adentrando o Bom Fim, um bar que às vezes eu ia era o Vermelho 23, que ainda está na ativa, e que sempre tinha boa música. Havia um bar que ficava às escuras, se não me engano era na Felipe Camarão, iluminado por velas, acho que o nome era “Feito à mão”, mas não tenho certeza. Nas proximidades da Independência ficava o restaurante Lugar Comum, sempre com música de ótima qualidade, geralmente instrumental. Posteriormente, no segundo piso da casa, foi aberta a célebre “Sala Jazz Tom Jobim”, na qual cheguei a me apresentar, já nos anos 90. Na independência, era comum vermos shows nacionais bem legais no Teatro Leopoldina, que depois virou o Teatro da Ospa. Um outro bar que, a princípio, era mais de MPB, mas que depois passou a dar espaço a shows de bandas de rock, e que eu freqüentava, foi o Theatro Mágico, que ficava na descida da Tomás Flores.

A minha “rota” mais comum, contudo, era a da Cidade Baixa, pois ali se concentrava de forma mais preponderante o pessoal próximo ao meu perfil, que era de estudante universitário e fã de MPB. Eu era frequentador do Bar Marcelina, que ficava originalmente na rua Sofia Veloso, e depois mudou-se para a José do Patrocínio. Era um bar muito legal, porque reunia, entremeada entre o público em geral, uma legião de artistas, a maioria desconhecidos como eu, propiciando conhecer muita gente legal e talentosa: o bar formalmente não tinha música ao vivo, mas sempre havia um violão e fazíamos muitas rodinhas, cada um tocando um som, mostrando as suas músicas para os amigos, era bem legal. Encontrava-se lá seguidamente artistas que considerávamos “famosos”, como o pessoal do Raiz de Pedra, Wesley Cool, Jimi Joe, e muitos outros caras que faziam sucesso na cena musical de Porto Alegre naquele período. E lá eu convivi com muitos amigos queridos e talentosos como Auriu Irigoite, Glei Soares, Henrique Wendhausen, Dedéia, Eleu, Iran Rosa, Edmar Fabrício, Cléber Fiorentin, Mário Marmontel e tanta gente mais. Outro lugar legal de ir era a Terreira da Tribo, na José do Patrocínio: eu e o Auriu chegamos a nos apresentar lá, no “Bar da Terreira”, em um show acústico. Sinceramente, embora seguidamente eu circulasse na área, nunca tive coragem de assistir uma peça no Teatro da Terreira, pois alguns amigos que o haviam feito contavam que haviam servido de alvo dos atores em cenas escatológicas, não sei se era verdade, mas na dúvida não queria arriscar. Eles faziam lá uma cerveja “natural”, que era bem comparável àqueles remédios da grife fitoterápica “cibecol” (lembram? O amargor é inesquecível). Ali próximo, indo pra direita, ficava o “Caminho de Casa” (no segundo andar, onde hoje há uma imobiliária no térreo), também um lugar legal, em que os músicos fixos eram geralmente o Xico Mestre e o Daniel Sá, e seguido eu e minha turma íamos lá “dar uma canja”. Indo para a esquerda, havia o João de Barro, que era um bar de música nativista; isto era uma coisa legal, nos anos 80 o nativismo virou uma coisa meio pop, e mesmo nós, que éramos bem “urbanos”, gostávamos de ir às vezes neste tipo de lugar, inclusive no Recanto do Tio Flor, na Getúlio Vargas… havia também um outro bar em que a gente ia, que era perto da Mariante, senão me engano chamava-se Macanudo, só lembro de ver o Sérgio Rojas, e o Neto Fagundes, tocarem lá… ali nunca nos deixavam “dar canja”, pois tínhamos visual típico de “magrinhos do Bom Fim”, e certamente o pessoal tinha medo que nós déssemos “bola fora”, saindo do “script” e do repertório usual da casa. Na calçada da José do Patrocínio, também houve, durante um tempo, o bar Delírio Lilás, que passou a abrigar diversos shows legais do pessoal de Porto Alegre, lembro de ter visto ali pela primeira vez o Quintal de Clorofila, da dupla dos irmãos Arbo, de Santa Maria, entre muitos outros shows. O Zelig, na Sarmento Leite, estava começando, mas já era uma ótima opção, o que segue ocorrendo. Seguindo em direção à Venâncio, na José do Patrocínio uma parada obrigatória era o bar Tigela de Barro (ou será panela?), onde a Adriana Calcanhotto estava dando os seus primeiros passos, já com muito sucesso. Ali eu dava “canjas” também, e fiquei amigo dela. Indo em frente, mas dobrando à direita, estava o antigo Opinião, onde muitos músicos tocavam, como Totonho Villeroy, Nando Gross, Paulo Gaiger, e eu costumava ir lá pra “dar uma canja”. Falando em “canja”, havia, no lado oposto da José do Patrocínio, bem perto da Sarmento Leite, uma famosa casa “mata-larica” que servia o prato, e também qualquer tipo de sopa, muito frequentada pela galera.  Mas voltando, mais adiante, já na própria Venâncio Aires, ficava o Pecados Mortaes, bar em que, segundo a Adriana, naquela época era o seu “sonho de consumo” tocar (e em homenagem ao qual chegou a fazer uma música). Mas, em verdade, este bar não era muito diferente dos demais: muito barulho, fumaça de cigarros, garrafas de cerveja nas bandejas dos garçons que iam pra lá e prá cá, uma certa azaração e um pobre músico tentando “fazer a sua arte”, não raramente pra “ouvidos moucos” (cabe dizer aqui, para o “público leitor nacional”, que estes bares não eram muito diferentes daqueles do Baixo Leblon, no Rio, ou da Vila Madalena, em Sampa). Aliás, ali  vivi uma história bem engraçada: como o bar estava lotado, eu estava do lado de fora; nisto encostaram duas moças bem bonitas, uma loira e outra morena, vestidas como se fossem sair pra noite, com vestidos e tudo, o que destoava em muito do figurino do ambiente, bem casual; eu, por minha vez, vergava  meu habitual traje “chinelão-estudantil”: calça jeans comprada na Voluntários da Pátria surrada, camiseta de movimento estudantil e tênis velho, cabelos despenteados e barba desgrenhada; pra meu espanto, uma das moças, muito simpática e bem-falante, puxa assunto comigo, e papo vai, papo vem, me convida a levá-las pra outro lugar; eu, lógico, aceitei, embora não estivesse acreditando muito na minha sorte grande; depois de um certo tempo de conversa no tal outro bar, eis que a moça abre o jogo: “olha só, a gente viu que tu és um cara “do bem”, estudante de Direito, limpeza, é que a gente é da delegacia de narcóticos, e tava dando uma incerta, sabe como é, nós também somos estudantes de Direito, etc.,etc… bom, pelo menos tava explicado o “prêmio de loteria”… evidente que eu não “me dei bem” com elas, e tão logo deu uma “brecha”, disse tchau sem reclamar, agradecendo aos céus por “escapar ileso e com vida”. A esmola, quando é demais, o santo desconfia.

Já quando da volta de meu roteiro “Cidade Baixa”, eu costumava passar no Pedrini ou no Bar do Beto, este então localizado na esquina com a rua do quartel, e mais perto do quartel havia o Fazendo Artes, bar em que também costumava ir ver a Adriana tocar, num período posterior. Também havia um barzinho legal com música ao vivo, bem defronte do atual Bar do Beto. Mas voltando pra Cidade Baixa propriamente dita, o entorno da esquina da Lima e Silva com a República, que hoje está sempre fervilhando de gente, também tinha opções legais, como, por exemplo, o Gota D’água, dentre outros bares. O Gota D’água (hoje onde funciona um café) era um fenômeno: não sei como conseguia entrar tanta gente num espaçozinho tão pequeno, mas certamente os copos de vinho branco de garrafão nos faziam abstrair destes detalhes, para nos concentrarmos na rodinha de violão. Não era raro que, dependendo da música, de repente todo o bar parasse com as conversas paralelas e entoasse em uníssono a música que alguém cantava. O Van Gogh já estava localizado ali, e é um dos poucos bares daquela época que continua na ativa, e ainda é praticamente a mesma coisa. Lá pelos lados da Getúlio Vargas, eu gostava de ir no Viva Maria, onde tocavam o Plauto Cruz e o João Pernambuco, e também na Cia. de Sanduíches, ouvir uma boa MPB. Mas havia ali uma série de bares cujo nome não me lembro, também neste estilo. Outro bar bacana de ir era o Purpurina, do Jerônimo Jardim, onde eu via tocar o Antônio Villeroy e o Pedrinho Figueiredo. Havia também o Vinha D’alho e o Carinhoso, bares de uma boemia mais tradicional, sempre com boa MPB. Uma vez, a muito custo, eu e uns amigos conseguimos entrar no Chipp’s, que era conhecido como “point” de cassação (a palavra, corretamente grafada, deveria ser “caçação”, pois vem de caça, mas o corretor do computador “sublinha”, e, convenhamos, fica estranho). É que havia uma “reserva de mercado” da mulherada por parte de alguns habitués, em favor dos quais o porteiro não permitia a entrada de outros “machos”… a entrada da mulherada, é claro, era “de grátis”, pois o local era de “catigoria”. Mas sinceramente não gostei muito do estilo daquela casa noturna, e nunca quis voltar lá. Hoje o Chipp’s é diferente, virou uma danceteria mais voltada para casais, mas naquela época era um barzinho com música ao vivo à base de voz e violão. Havia, ali perto, mais pro lado da Venâncio, o Rocket 88, do Mutuca, onde bandas como os Garotos da Rua iniciaram.

Surgiram também, mais ou menos nesta época, várias danceterias vinculadas ao rock. Uma que eu costumava ir muito era no Taj Mahal, lá na Farrapos, descendo a Santo Antônio. Lembro de uma vez em que fui ver o show da banda argentina Dragon, na qual o Mitch Marini assumiu o baixo. Eu tava tão duro que, após pagar o valor do ingresso, tive que tomar a água da pia do banheiro, pois não sobrou mais nada, e voltar a pé (o que era comum, não tínhamos tanto medo de ser assaltados, mesmo andando em ruas escuras e ermas na “madruga”,  estes infortúnios eram bem mais raros)… bons tempos. O brinde era o banho de piscina, mas sinceramente nunca tive coragem de pular lá dentro, mesmo porque aquela já devia ter sido usada “historicamente” para fins escusos, quando o local abrigava casas do gênero tão típico daquela região da cidade, “sabe como é, seguro morreu de velho”. Mas, fora de brincadeira, devia ser limpinha, pois a proprietária mantinha a casa no capricho; eu é que achava meio estranha a idéia de pular em uma piscina de madrugada, mas bem que dava vontade.

O Porto de Elis (na subida da Protásio Alves, bem perto do Barranco) também marcou época, e destacava-se muito pelos shows de qualidade que promovia. No “caminho do meio” entre o Bom Fim e Petrópolis, havia o Tivoli, um bar de estilo “boemia das antigas”, mas que também contava com boa música. Já a subida da Protásio (refiro-me à parte lá pros lados da Carlos Gomes), nesta época, havia perdido em boa medida o posto de um dos principais “points” noturnos de Porto Alegre, que chegou a ter nos anos 70, sendo um local em que eu ia mais eventualmente. Mas nesta época chegou a funcionar um bar lá, o Bangalô, onde, ao que parece, o Nenhum de Nós começou a tocar.

Na época, a zona noturna das classes “mais privilegiadas” preferencial era a 24 de outubro e seu entorno. Diante do que adiantei no início, não seria preciso dizer que eu dificilmente ia lá, mas nas vezes em que fui também encontrei algumas opções boas, como por exemplo o Kilt Pub e o Kafka (no local depois funcionou o Zappa, e atualmente está o Bodega). Lá pros lados da Cristóvão Colombo, também tinha bons bares, mais próprios pra tomar um chopp, como o Walter, o Vassouras, o Sebastian e o Bar Um. 

Enfim, certamente estas mal traçadas linhas não servem como um retrato mais fiel da noite de Porto Alegre do início dos anos 80, e tampouco eu poderia dizer que os endereços que lembrei correspondiam ao “melhor da noite gaúcha”. Longe disto, pois muitos destes lugares não eram necessariamente tão descolados e muito menos eram sofisticados. Estas escolhas, como disse, evidentemente passaram pelo meu gosto pessoal e até pelas condições monetárias para “fichar” (que na época eram praticamente nenhumas)… mas certamente estes lugares evocam lembranças de uma época legal de minha vida, e, afinal de contas, acho que é isto que interessa, recordar de endereços em que a gente se sentiu bem.

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